sábado, 30 de junho de 2012

As Terras Baixas, Erasmo, Bosch e uma consulta ao CID...

Hoje, o post é viagem pura. Se quiser alguma coisa ligeiramente mais leve dirija-se a outros blogs...

Há um catálogo chamado Código Internacional de Doenças que classifica sinteticamente, em seu décimo capítulo, a psicopatia como um transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais e falta de empatia para com os outros. 

Uma observação necessária: no presente post há muitas referências à loucura. Não se trata daquela com diagnóstico CID 10 já emitido. Tratamos do mesmo CID 10, só que do mais perigoso: aquele que nunca foi diagnosticado e provavelmente nunca será. Os piores psicopatas são os que estão por aí. Soltinhos da Silva.

Há alguns anos, visitei alguns dos países baixos. Bélgica e Holanda...

Há mais anos ainda, visitei o humanismo de Erasmo de Roterdã e de Hieronymus Bosch.  Para ambos, o tema loucura é central. 

O navio dos loucos de Hieronymus Bosch

Em Amsterdã, conversando com um neerlandês, ouvi uma das observações mais curiosas sobre a "gestão da loucura". Na Idade Média, as cidades européias tratavam de seus "loucos" deportando-os. Eram barcos que aportavam nas cidades e coletavam os "problemas". Vagavam pelo mar do norte. Uma versão do "varrer sujeira pra debaixo do tapete" à  moda holandesa...

É fácil perceber que nosso "modelo civilizatório" não promove exatamente a sanidade. As metas, as ambições, as aspirações são insustentáveis no longo prazo e o pior: não têm nada haver com os talentos intrínsecos do ser humano. Somos condicionados para ganhar mais, ter "cargos" mais "poderosos". Somos condicionados e conduzidos, enfim, para coisas que nada tem haver com nossos sonhos. Penso que a tragédia contemporânea é que a "maior parte" dos que venceram a guerra do cotidiano e "se deram bem", no fundo nutrem uma profunda e subliminar sensação de vazio. Os que ficaram ao longo da estrada, se perderam nela... 

Sempre precisamos mais. Muito mais... Agora, não abordamos mais navios... Camuflamos o problema com toneladas de ansiolíticos e outras drogas tarja preta. Somados ao gigantesco mercado das drogas psicoterápicas vendidas num esquema fast-food, esquecemos do essencial e trocamos a vida por símbolos e grifes. 

Desafortunadamente, é comum ter oportunidade de observar (não tão raramente) os mecanismos mais internos da loucura humana. A loucura má do CID 10: aquela que demonstra desprezo absoluto pelo sentimento alheio, aquela que se mostra egoísta e arrogante. Hipócrita na discussão, desonesta nos argumentos. Manipuladora e imperialista nas relações: seu único objetivo é subjugar o outro. Pôr de joelhos a razoabilidade e inverter os pólos: tornar o certo, errado, e o errado, certo. Ou seja, perpetrar o "samba-do-crioulo-doido", desprezando sentimentos genuínos de amor e afeto...

De toda a experiência, o que mais importa para eventuais leitores: a loucura é um fenômeno social... Não se consegue mais deportar um louco só. Grupos inteiros devem "subir a bordo"... O exercício é simples: quando vemos um louco, pode ter certeza: ele deriva de complexos grupos e esquemas que promovem a loucura. Isso pode ser observado dum ponto de vista inter-geracional. 

"Grupos sociais" promotores da loucura promovem (na verdade) uma espécie de "elogio" da "loucura negativa". Uma loucura que se materializa numa atitude arrogante de dar valor apenas às imagens e percepções: só há "valor" se houver cargos, preços, "sinecuras", status e honrarias... Não importa se a pessoa é feliz. Importa parecer feliz (exclusivamente) aos olhos dos outros... É uma espécie de império das aparências. É como se gritassem: "que se dane a essência dos sentimentos"...

Infelizmente, essa loucura é mantenedora do status quo vigente e dominante: o vazio existencial que assola cada vez mais o ser humano, em amplos campos das suas atividades e manifestações. 

Infelizmente, no cotidiano contemporâneo, não há mais espaço para positiva loucura filosófica: aquela que atenta contra o modelo dominante (a loucura saudável elogiada pelo humanista Erasmo) e que é capaz de oxigenar o presente, renovando o futuro. Essa loucura positiva está se extinguindo... Somos, neste sentido, reféns do passado... Ou pior, escravos dele, na sua infinita repetição...

Esse post conclui muita coisa, mas não tem conclusão alguma. É um mero exercício filosófico...