terça-feira, 14 de junho de 2011

Uma América do Sul entre "véus" que enganam...








Dessa vez, demorei um pouco a escrever. Como diria um amigo, estou em falta com meus assíduos (4 ou 5) leitores. Questões pessoais e de saúde que agora não têm pertinência...

Na semana passada estive no Uruguay. País latino-americano curioso... O Mercado do Porto, no Centro Histórico, é a "churrascaria" mais original em que já estive! Experiência muito agradável! O aeroporto da capital, Montevidéu, é digno de qualquer cidade central da Europa. Seu interior lembra o de Toronto, no Canadá. Jóia arquitetônica e logística de alto nível  internacional. Resumindo: o aeroporto é fantástico! Foi - inclusive - avaliado como um dos sete mais belos do mundo.  

Para quem admira arquitetura contemporânea, é marcante. Lembra muito as obras de Santiago Calatrava, na Espanha. Se o aeroporto impressiona, impressiona mais ainda a transição entre sua arquitetura e a chegada à cidade real. Montevidéu padece dos males e fantasmas que povoam a América do Sul: desigualdade sócio-econômica absurda. Quando se visita Punta del Este, a sensação é estranha. Parece que é tudo muito próspero. Mas é só uma sensação: a pobreza continua no Uruguay, só que distanciada do balneário dos milionários sul-americanos que arriscam a sorte no Cassino Conrad...

De volta ao Brasil, em Brasília, percebo também que esta cidade atinge um grau de exclusão que tende ao infinito. Quando se conhece Brasília, é inevitável pensar que a cidade tem a solução para os problemas sociais brasileiros: não se vê meninos de rua, não se tem a sensação de insegurança que faz guardar na bolsa o relógio de pulso... A cidade não tem muitos sinais de trânsito e - talvez por isso - não há muitos pedintes a abordar motoristas parados. O ponto é que Brasília tem seus encantos... A sensação de segurança é - sem lugar a dúvidas - um dos mais apreciados.

Nos últimos meses, tenho passado bastante tempo em Brasília. Há algumas semanas recebi um telefonema de uma grande amiga, perguntando se eu estava bem... Ela, assustada, estava impressionada com a matéria veiculada no programa Fantástico, que mostrava a violência nos arredores de Brasília. Ela ficou impressionada quando disse que aquele nível de violência (tão próximo) não afetava meu cotidiano, diretamente. 

Expliquei que o "Entorno de Brasília" tem uma configuração social diferente do Plano Piloto (área central de Brasília, com maior nível de renda per capita do país). Era uma maneira suave de explicar o fenômeno da segregação sócio-econômica. Brasília é especialista nesse efeito exclusão: para os mais desavisados, parece que está numa cidade belga. Sem riscos de segurança, parece que tudo tá certo, mas no entorno...

Hoje, assistindo à TV, uma chamada ao vivo (em rede nacional, às 11h) trata da invasão por assaltantes de uma residência, fazendo reféns seus moradores... Inicialmente, penso ser em São Paulo, no Rio, cidades que não conseguem segregar tão bem a população, de acordo com estratos de renda, tal qual faz Brasília. Quando a repórter indica ser em Brasília, penso: deve ser no entorno. Ledo engano... É na Asa Sul... Isso, sim, destoa do padrão! O Plano Piloto de Brasília não tem esses "problemas" de segurança... Será? Já comentara há certo tempo que a área central de Brasília "vendia" muito bem a "percepção de segurança" e isso é completamente diferente de segurança... É que quando se tem muita miséria de um lado e excessiva prosperidade de outro, o equilíbrio é frágil...

Punta del Este e Brasília são exemplos urbanos do maior mal da América do Sul: desigualdade extrema, ricos de um lado, pobres de outro separados por uma "cortina de seda" frágil... Um "véu burro" que parece separar, parece proteger o lado "rico" do "pobre" mas apenas dissimula uma proteção inexistente... E o risco de se enganar é maior para o lado "rico".

Jonh Rawls é um "jurista-economista" americano. Rawls concilia muito bem as perspectivas econômicas e jurídicas e desenvolve "uma teoria de justiça" curiosa e didática: partindo de uma "historinha" que lembra muito os textos de Platão, ele define que um "contrato de sociedade" só seria "justo" se todos os participantes da assembléia original, que definiria os papéis a serem desempenhados por cada um (brancos, negros, pobres, ricos, belos e feios etc e seus respectivos direitos e deveres futuros), estivessem "vendados"

Essa ideia é primorosa: para J. Rawls, quanto maior for a ignorância (que ele denomina de véu da ignorância) sobre seu papel futuro, menor será a disposição do homem a criar sistemas e esquemas que distanciem excessivamente pobres e ricos, negros e brancos, belos e feios, e quaisquer outras categorias de segregação... É como se - na dúvida - a média satisfizesse mais... A pergunta interior que  cada membro da assembléia se faz é a seguinte: como não sei se estarei do lado mais favorável, como faço? A resposta racional é óbvia: melhor diminuir a distância entre os dois lados.

Essa "teoria" comporta uma lógica "egoísta" muito produtiva e simples: Como não sei se serei campeão ou n-ésimo colocado, é melhor distribuir mais equitativamente o prêmio. 

Esse argumento egoísta tem ainda uma derivação brasileira não insignificante: há duas semanas uma motorista de um BMW (carro de luxo alemão)  estava próxima à região da Paulista, em São Paulo. É bom que se frise: ela não estava na zona Leste de São Paulo (a Índia brasileira), que apresenta índices de violência absurdos. Ela estava na parte "belga" do Brasil. À primeira vista, parecia que ela tinha ficado do lado "confortável" da história e de repente, descobriu que não...


No Brasil, mesmo os que estão sem o "véu da ignorância" e sabem que estão do lado "vencedor" na selva social, eventualmente, descobrem que o prêmio não é lá dos melhores... É que o "véu" que separa os ambientes dos "vencedores" e "vencidos" é o "véu burro" da segregação...

Não sei se lembram, mas é do economista Edmar Bacha, uma das melhores definições do Brasil: "O Brasil é uma Belíndia, um pouco de Bélgica e muito de Índia" O ilustre economista tem razão em seu conceito de Brasil, e eu arriscaria extrapolar para América do Sul. Há áreas do continente (como o Aeroporto de Montevidéu, Punta del Este, Plano Piloto de Brasília e áreas nobres em São Paulo) que não deixam a desejar em relação à Bruges, na Bélgica, em termos de indicadores sócio-econômicos. Há também áreas como a vizinhança do Aeroporto de Montevidéu,  o Uruguay como um todo, o entorno de Brasília, e a Zona Leste da capital paulista que fazem referência inequívoca à pobreza das multidões indianas...

Retomando a narrativa prévia acerca da motorista do BMW, o problema (e ele sempre existe quando o "véu é burro") é que a motorista acima narrada levou um tiro no rosto enquanto tentava estacionar o carro na área belga, digo, nobre de São Paulo. Arriscaria dizer algo "chato" aos que acreditam na solução "segregatória": esquemas de segregação são falhos por natureza. Ainda que se ergam muralhas para separar, como se faz entre Israel e a Palestina ou entre México e EUA ou através do isolamento promovido pela arquitetura moderna da capital federal, a segregação não funciona sempre...  E é por isso que a motorista foi ferida e a família foi rendida dentro de casa...

E aí surge a grande questão: Pra que ser tão rico e ser assassinado ou encarcerado durante o gozo "solitário" da riqueza? 

Será que a motorista do BMW não preferiria (hoje) manobrar um carro mais "médio" e não ter sido alvejada? Essa é a lógica poderosa do véu da ignorância de Rawls. Enquanto os véus que vigorarem no país forem os da segregação ("véu burro"), e não os de Rawls, pouca coisa vai mudar... Vai parecer que é a velha e mesma notícia, sempre reeditada.